sexta-feira, 24 de agosto de 2007


«Tudo se despedaçou. o sonho, e o amor que é sempre tão breve.o mundo dorme sob o vento. só eu continuo acordado, em vigilia. se houvesse agora uma catástrofe eu daria por ela. levantar-me-ia daqui para encarar a morte, dizer-lhe que são inutilidades o que arrasta consigo.


estou gasto. dei-me sempre mais do que podia. não há nada que me possam roubar, sou um homem espoliado de todos os bens, de todas as doenças, de todas as emoções. sou um corpo pronto para a viagem sem regresso, para o crime e para a morte. sou um corpo que se evita, um homem que cujo nome se perdeu e cuja biografia possivel está no pouco que escreveu. sou um corpo sem nacionalidade, pertenço às profundidades dos oceanos, ao voo da ave migrante. sou um alfabeto e não sei se terei tempo para me decifrar.


lá fora anoiteceu.


São raras as claridades que do meu sangue sobem ao rosto. há um lume invisivel no teu olhar, uma visão que o espelho me revela: cintilam cristais enquanto dormes, uma árvores cresce nos pulmões. assim construo paisagens, assim te ofereço a morada de sossego e de prazer. mas tu não vens, porque me és exterior. posso criar o universo inteiro a partir das minhas células, só não posso criar-te a ti, corpo que morre na falsa juventude dos espelhos...


...a paixão revelou-se-me no instante em que percebi que sabia quase tudo da vida, mas já não foi possivel perder-me na tentação do suicidio. nunca amei e nunca fui amado: ignoro se isto é verdade, o mais provável é ter inventado, um dia, esta mentira, unicamente para me salvar.


que horas serão para lá deste século?

onde estaremos neste momento?

estarei eu em ti ou serás tu que me devoras e me comoves?


...o teu nome, pronuncia o teu nome para que seja possivel esquecer-me do meu. diz-me o teu nome de ontem, quando éramos o reflexo exacto um do outro. toca-me o rosto com o teu nome, ou pousa-o sobre as mãos; debruça-te para dentro de mim e deixa que o segredo do tempo fulmine os ossos.»


O Medo, Al Berto

1 comentário:

joão matos disse...

Há muitas maneiras de morrer, há muitas coisas para matar. O que se tem de matar primeiro é o que está mais próximo de nós. O que temos a obrigação de matar primeiro é o nosso amor. Depois já não é preciso, depois basta acabar.

(Pedro Paixão)